terça-feira, 21 de outubro de 2008

PADRÃO ALIMENTAR DO ESCRAVO AFRICANO



No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o “tete-à-tete” de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. Esses molecotes mimados até a idade de cinco ou seis anos, são em seguida entregues à tirania dos outros escravos que os domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças revoltadas por não mais receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice repentinamente contrariada leva a saborear com verdadeira sofreguidão. (Debret, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. 1978, p. 195 e 196)

O padrão alimentar do escravo africano apesar de variar segundo o tipo de trabalho e as condições financeiras do coronel, mantém certa padronização que vai caracterizar qualitativamente e quantativamente sua ração e sinalizar o padrão alimentar do brasileiro. O alimento servia para mantê-los como mão-de-obra “sadia”, dentro dos limites da sobrevivência, obviamente o tipo de trabalho, a região e as condições financeiras do coronel tipificavam as condições alimentares.

A ração alimentar do escravo de maneira geral era composto de fubá de milho cozido com água o chamado angu, feijão e sal, pirão, a caça, a pesca, a carne-seca, toucinho, farinha de mandioca, banana e laranja. Sua quantidade calórica irá depender da situação financeira do seu proprietário e do tipo de atividade econômica no qual estava inserido, bem como, era usuais a alimentação ser a mesma e padrão (punhado de farinha de mandioca com água e laranja). A variedade alimentar vai depender do coronel, do escravo e seu tempo para poder melhorar sua dieta e das condições de opressão as quais os mesmos estavam submetidos.

O oficial alemão Carl Seidler que escreveu sobre o Brasil no período de D. Pedro I, descreve a alimentação escrava:

A alimentação habitual dos escravos na capital consiste em farinha de mandioca, feijão, arroz, toucinho e bananas; no interior do pais, mormente nas casas mais pobres, às vezes têm que se contentar durante meses com laranja e farinha. Não se acreditaria que com semelhante alimento pudesse um homem conservar sua força e saúde, mormente tendo trabalho pesado, entretanto esses negros são tão fortes e sadios como se tivessem a melhor alimentação. Por aí se vê como o africano exige pouco para sua manutenção, pois um alemão, ou de um modo geral um europeu, alimentado exclusivamente a laranja e farinha, dificilmente atingiria idade avançada, com saúde, como acontece com os negros no Brasil.

Com a culinária escrava, coronéis se enriqueceram, escravas conseguiram conquistar a sua liberdade e manter seu sustento, todos colaboraram para a diversidade alimentar do povo brasileiro. As negras cozinheiras foram famosas por seus temperos e pratos e pela centralidade que as mesmas possuíam no interior da casa-grande, pois todos por lá passavam ou permaneceram, as pretas velhas com sua experiência com seus segredos de alquimistas; as mucamas estimadas por seus senhores e responsáveis pelos serviços caseiros e amas de leite; sinhazinhas filhas dos coronéis e os próprios nhonhôs como assim eram chamados pelos escravos.

A cozinha é o ponto de encontro, a raiz da sociabilidade da casa-grande, todos para lá se dirige para satisfazer sua fome biológica e espiritual. É o local em que as expressões ganham espaços de liberdade, as confidências tornam-se discursivas entre a degustação de um prato e outro. A feminilidade transcende o gênero e ganha contornos de sexualidade e faz a fama de negros cozinheiros numa sociedade extremamente machista.

Mas foram as mulheres escravas que deram o toque da diversificação alimentar que na luta áspera por sua independência e o sonho pela alforria, buscam conquistar a liberdade financeira. A cana de açúcar com o trabalho escravo cria subprodutos alimentares como os doces, mundo em que a escrava navega independente e segura no reino do fetiche gastronômico brasileiro. Nesse particular o professor de história Luciano Figueiredo comenta:

Formavam assim uma verdadeira multidão de negras, mulatas, forras ou escravas que circulavam pelo interior das povoações e arraiais com seus quitutes, pastéis, bolos, doces, mel, leite, pão, frutas, fumo e pinga, aproximando seus apetitosos tabuleiros dos locais de onde se extraíam ouro e diamantes.

A cultura do tabuleiro ganha contornos artísticos, exóticos e algumas vezes eróticos, a arte do enfeite enfeitiça os olhos e os estômagos dos indivíduos, determinando atributos mágicos aos produtos elaborados pelas escravas cozinheiras como forças mágicas quase religiosas. As negras ganham o status de Mães-Benta e adornam seus quitutes como legítimas obras de arte de uma gastronomia. transbordando de sincretismo cultural.

A cientista social Fátima Quintas descreve a importância da cultura das Negras de tabuleiro:

Os tabuleiros ficaram famosos pela delicadeza do rendilhado e pela coreografia poética. Doces produzidos por negras e embelezados por negras. Algumas delas forras, que iam vendê-los na rua, exibindo, assim, dotes físicos e culinários.[

As mulheres que se dedicavam ao tabuleiro eram conhecidas por sua atividade de ambulantes e pela capacidade de comercializar suas mercadorias na qual passavam muitas vezes a praticar ou ocultar a prática da prostituição. Seu fluxo monetário congregava muitas vezes recursos advindos de atividade não legais como produto de roubo.

Foi às mulheres escravas e negras que deram à culinária brasileira a arte dos sabores diversificados misturando gostos e costumes de etnias diferentes e solidificando uma gastronomia brasileira que alcança qualidade inigualável.

O Brasil possui uma gastronomia invejável, em que a qualidade protéica e nutricional dos alimentos é rica e extremamente diversificada, bem como, a quantidade e equivalentes são fartos e populares. Mas não chegam às mãos de quem necessita, pois a estrutura de poder que sustenta o sistema econômico subsiste desse processo de desigualdade.

Nesse sentido, aqueles que tiveram seu direito de cidadania subtraído como a população escrava, deixaram uma riqueza no campo da gastronomia que só pode ser entendido no conjunto histórico da sua existência. O papel desempenhado pela cozinheira dentro da casa-grande, a luta do escravo para conseguir alimentar-se, contribuíram para que a culinária da opressão se tornasse em manjar dos deuses e alegrasse estrangeiros.





Nenhum comentário: