quinta-feira, 14 de maio de 2015

Cultura Negra no Rio Grande do Sul

     A identidade é formada a partir de traços culturais compartilhados, que dizem respeito ao sentimento de pertencimento a um grupo. Cultura, uma teia de significados tecida pelo próprio homem.

     Vertente Jeje "Mina"
     Os jejes ou evhés provém do grupo Geng do Benin e região. São chamados ewes em inglês. Fon é outro grupo e seu idioma. No Rio Grande do Sul fala-se em jejes. Sua religião e a dos fons é o Vodu, Vodum, Vudu. Mas no Brasil em geral ela foi assimilada à religião ou tradiçãos dos orixás, dos iorubás ou nagôs. É mais expressivo no Maranhão, no Tambor-de-Mina, culto realizado na Casa-da-Mina, e em Salvador, na Bahia, onde há candomblé de jeje. No sul, em Porto Alegre, Pelotas,  Rio Grande e outras cidades o Batuque o Nação iorubá é até mencionado(a) como sendo jeje-nagô ou jeje-iorubá, devido à influência jeje. No toque do tambor, por exemplo.

     Linguisticamente, coisa pouca: os vocábulos jeje, vodu, talvez Bará (Legba, Elegbá ou Elegbará - o mesmo que Exu)... Certamente muitas técnicas importantes foram praticadas e transmitidas pelos jejes em seu trabalho valioso nas terras gaúchas. Assim como sua sabedoria.

     Historiadores e antigos viajantes citam os "minas" como bons trabalhadores. As negras minas ficaram famosas como vendedoras de doces e outras iguarias. Por exemplo, na praça da Matriz em Porto Alegre, durante a Festa do Divino. Minas seriam integrantes da etnia mina ou do grupo fanti-achânti de Gana (antes Costa da Mina) ou ainda de outros grupos embarcados no porto de Elmina ou São Jorge de Mina, na costa africana junto ao Golfo da Guiné (OLIVEIRA SILVEIRA, 2000).

     Vertente Iorubá ou Nagô

     Yorùbá: iorubá - é o povo e também o idioma. País na África: a Nigéria. Só chegaram ao Brasil, e também ao Rio Grande no início do século 19.

     Linguagem: vocábulos como axé, babalorixá, ialorixá, ilê, orixá.

     Oralitura, oratura, literatura oral: narrativas alusivas, principalmente, aos orixás e suas lendas, e ligadas a essa tradição. Expressões como "bater cabeça", "fazer um despacho" (ebó, oferenda)... A palavra oralitura é difundida pela escritora negra mineira Leda Martins.

     Culinária: (artes e técnicas na alimentação): amalá, acarajé... O complexo alimentar dos orixás, comidas próprias de cada um deles.

     Música e dança: no RS, limitam-se à música e à dança sacras, próprias do ritual na cerimônia religiosa de Nação (Batuque). Os cantos são chamados rezas, dançadas seguindo o toque de tambores e agê. Canta-se em iorubá.

     Religião: na verdade, trata-se de uma cosmovisão, algo bem mais amplo e que engloba a religiosidade. A Tradição dos Orixás valoriza as forças da natureza e a ancestralidade. É visão ou interpretação humana diante da vida e do universo. Olorum é o que em português se chama Deus. Os orixás ou "ministros", são as forças da natureza, são modelos, são ancestrais. O local de culto, que na Bahia se chama candomblé, no Rio Grande é conhecido como casa-de-nação. O culto ou manifestação ritual é Nação ou Batuque em Rio Grande, Pelotas, Porto Alegre e outras cidades sulinas. Cessada a antiga perseguição policial, essa e outras religiões ou tradições de matriz negro-africana têm sido ainda vítimas de intolerância e desrespeito. Mas são tradições religiosas que preservam cultura, incluindo língua e linguagem. Entoam cantos em iorubá no ritual. Preocupam-se e respeitam a natureza, pois lidam com a força vital que vem dela. E estão vinculadas a ela em todos os seus aspectos: natureza física, humana, cósmica (OLIVEIRA SILVEIRA, 2000).

     Vertente BAnta Angola-Conguense

     Entre os bantos, predominaram no Rio Grande do Sul os procedentes do Congo e os de Angola. O Congo foi dividido em dois países após a sua independência. Entre os congoleses sobressaíram os falantes do idioma quicongo (kikongo) e entre os angolanos os falantes de quimbundo (kimbundo).

     Linguagem: macumba, inquice, quitute (quicongo), moleque, matungo, quilombo, quimbanda, quitanda, umbanda (quimbundo). Eliminando consoantes (que são ruídos) e valorizando as vogais (que são sons) negros falantes desse e outros idiomas africanos foram tornando mais suave e musical o português do Brasil: falá, dizê, muié, nego e nega (timbre fechado no e). Acrescentaram muitas novas palavras ao vocabulário. E mexeram na construção da frase, no estilo ou jeito de dizer e no sentido de palavras e expressões.

     Culinária: feijoada, mocotó, pé-de-moleque, quibebe...

     Música e dança: samba (do quimbundo semba) com suas variantes. Pontos e dança no ritual de umbanda. Influência na música regional ou sulriograndense e platina: vaneira ou havaneira, tango, milonga, malambo. O candombe, vivo no Uruguai e em Minas Gerais, teve registros em Bom Retiro do Sul e Porto Alegre (RS), no passado. Viajantes e cronistas brancos chamavam tudo de batuque, ignorando a variedade de danças e formas musicais. No Rio Grande do Sul, certamente houve todo tipo de manifestação musical e coreográfica banta: lundu, semba, candombe, jongo...

     Capoeira: cronistas já registravam a capoeira no inicio do século 20 em Porto Alegre. (Capoeira-de-angola, certamente). A prática desse jogo arte e luta-capoeira-de-angola e a regional - foi intensificada a partir da década de 70.

     Religiosidade: A umbanda, considerada religião brasileira, nasceu de base angola-conguense, recebendo muitos sincretismos, inclusive da vertente iorubana. Em Angola, umbanda é a ciência médica e quimbanda é o médico tradicional. Terreiros de Angola e de Congo mantenedores da raiz africana são encontrados em Salvador-BA.

     No Rio Grande do Sul a africanidade banta aparece em pontos cantados em português, alguns talvez se referindo a Nzambi ou Zâmbi (Deus). Aparece no toque dos tambores, no culto aos pretos velhos (ancestralidade)...

     Ocorreu sincretismo quando os negros disfarçaram suas divindades em figuras ou imagens de outras culturas. Por exemplo: os iorubás usavam a imagem do São Jerônimo católico, mas na verdade cultuavam Xangô. Na Macumba e na Umbanda, os bantos também combinaram imagens. O sincretismo nas terreiras com espíritos ou entidades indígenas gerou uma ramificação, os chamados caboclos. E existe ainda um espiritismo de negros. Surgiu da macumba e da umbanda, com participação jeje e iorubá.

     Ligados ao catolicismo, sobrevivem o Quicumbi ou Ensaio de Promessa no litoral em Tavares e Mostardas, e a Congada de Osório, mantida pelo Terno de Maçambique. É a festa da Nossa Senhora do Rosário durante a qual são coroados o Rei de Congo e a Rainha Jinga. Tambores, canto e dança marcam essas expressões de religiosidade. (OLIVEIRA SILVEIRA, 2000).


FONTE: Ministério da Cultura. O negro no Rio Grande do Sul.Porto Alegre. 2005.

O Negro no Rio Grande do Sul

  

       Em outros estados brasileiros é comum as pessoas pensarem que o Rio Grande do Sul não tem negros, só descendentes de portugueses e espanhóis, ou alemães, italianos e outros imigrantes. O negro é também um dos formadores do povo sul-riograndense, assim como foi do País. Habitante do campo foi gaudério, nômade e viveu, também, à margem da sociedade escravagista. Foi quilombola. É gaúcho, sim, com a marca de trabalhador rural a cavalo. O gaúcho negro sempre existiu e existe. Viveu e vive nas estâncias e em pequenas ou minipropriedades rurais aqui no Sul.

     A colonização oficial do Rio Grande do Sul começou em 1737. Mas desde o século anterior, o negro já circulava por estas bandas sulinas. Participou da fundação da Colônia do Sacramento em 1680, lá perto de Montevidéu. O território português se estendia até lá, na época. Tomou parte da fundação de Laguna, em Santa Catarina, em 1684. Em 1725, integrou a frota de João de Magalhães, indo por terra de Laguna a São José do Norte/RS.

     Encontramos negros na Guerra Guaranítica, 1750, e nos conflitos de fronteira com os espanhóis do Prata, na década de 1770, como lanceiros em ação militar. Tinha mão-de-obra negra escravizada nas lavouras de trigo de açorianos e portugueses. Na feitoria do Linho-Cânhamo, em Canguçu, 1783-89, e São Leopoldo, 1789-1824.

     Charqueador

     Foi através da produção de charque que começou a entrar, de maneira significativa, no território gaúcho a mão-de-obra negra escravizada. Foram esses estabelecimentos que permitiram a consolidação do sistema escravista no Brasil Meridional. O charque, principal produto gaúcho manufaturado no século 19, era fabricado de maneira árdua.

      O progresso desse setor econômico só foi possível graças ao grande número de trabalhadores escravizados nas charqueadas. Há registros de estabelecimentos com mais de 100 escravos, como os de Eugenia Ferreira da Conceição, com 179; Antonio José da Silva Maia, com 116; Barão de Buthuy, 142 e outros (ASSUMPÇÃO, 1995).

     "Nas grandes charqueadas os negros são tratados com rudeza. O Sr. Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com exagerada severidade, no que é imitado por sua mulher, os escravos parecem tremer diante de seus donos.
     Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança" (SAINT-HILAIRE,1999,p.73).

     Rio Grande / Pelotas

     Pelotas foi o principal centro econômico, baseado na indústria do charque e com maior concentração de charqueadas. E prosperou, enriquecendo charqueadores, estancieiros e comerciantes. Antes de atingirem Porto Alegre, as novidades da Europa, a moda, etc. chegavam o porto de Rio Grande e a Pelotas.

     Com toda a sua importância histórica, Pelotas é detentora de valioso patrimônio arquitetônico. Ali, como, também, em Rio Grande, edificações preciosas são tombadas como patrimônio cultural e incluídas em programas oficiais de preservação. Construções feitas pelo trabalho negro escravizado. São José do Norte, Jaguarão, Piratini são cidades históricas do Sul do Estado, entre outras.

     No eixo Rio Grande-Pelotas e região continuam existindo tradições religiosas de matriz africana, clubes de negros. Tudo deita raízes numa presença negra muito forte em termos de trabalho e cultura.

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     Sopapo é um tambor grande da região Pelotas-Rio Grande, originalmente confeccionado com tronco de árvore. Foi descrito por Carl Seidler em 1828 e pintado em aquarela por Hermann Rudolf Wendroth em 1851.


     Conflitos e abolições

     A resistência negra em terras sul-riograndenses ocorria, por exemplo, através da fuga para o lado espanhol, para junto dos indígenas ou para qualquer refúgio possível. São muitos os anúncios de fuga em jornais do século 19. Havia também muitos assassinatos de "senhores", capatazes ou feitores. Os quilombos eram pequenos e reuniam em torno de 20 pessoas, no máximo, entre homens e mulheres. O Quilombo do Negru Lucas durou vários anos na Ilha dos Marinheiros, em Rio Grande, e foi extinto em 1833.

     Dos quilombos gaúchos destacou-se o de Manoel Padeiro. Localizado na Serra dos Tapes, na antiga São Francisco de Paula, atual cidade de Pelotas, surgiu na década de 30 do século 19. A Ilha de Barba Negra, na Lagoa dos Patos foi lugar de quilombo. E há muitos lugares denominados quilombo em território gaúcho.

     Nos últimos anos, a Antropologia tem apresentado um outro conceito de quilombo. Não se considera apenas resquícios arqueológicos de ocupação de grupos isolados e homogêneos, somente constituídos a partir de movimentos de rebelados. E, sim, grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.

     Durante a Revolução Farroupilha, muitos escravos aproveitaram a intranquilidade reinante para tentar a sorte como fugitivos. O mesmo ocorreu no período da Guerra do Paraguai. Quando, outra vez, aproveitando-se da conjuntura favorável, os africanos e seus descendentes tentaram em maior número, através da fuga, livrar-se da escravidão.

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     Lanceiros negros farroupilhas, na cavalaria e infantaria, teriam sido traídos pelos próprios comandantes farroupilhas, Davi Canabarro e Lucas de Oliveira, no massacre do Cerro dos Porongos, em 1844.

     Abolições - Em 1884, o   Rio Grande do Sul libertou parcialmente os seus escravos em Porto Alegre e Pelotas. Mas o "liberto" deveria continuar servindo aos "donos" por um período de cinco anos. Em 1888, o Brasil declarou extinta a escravatura com a chamada Lei Áurea.

     Nesse período, abandonado à própria sorte, o negro gaúcho lutou pela sobrevivência e criou a   Sociedade Floresta Aurora em 1872 (ou 71) a Associação Satélite-Prontidão (nome atual) em 1902, ambas centenárias, além de outros clubes. Fundou em Porto Alegre o jornal O Exemplo *1892-1930), A Alvorada (Pelotas, 1907) e outros órgãos da imprensa negra. Teve um representante liderando a Revolta da Chibatra no Rio de Janeior em 1910: João Cândido, o almirante negro. Criou núcleos da Frente Negra Brasileira e da União dos Homens de Cor. Estabeleceu em 1971, através do Grupo Palmares, a evocação do 20 de novembro, hoje Dia Nacional da Consciência Negra. E seguiu atuando ativamente no movimento social negro contra o racismo e a exclusão. Grupos, entidades, organizações. Contam muito a união, a solidariedade e o espírito de luta no seio de cada família negra.
     

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Formação do Brasil



De que África teria saudades um africano no Brasil? De sua aldeia, certamente, ou do bairro da cidade onde passou sua infância. No Brasil, deixara de ser conhecido por sua terra natal, pelo seu clã, pelo nome que o seu povo dava a si mesmo ou recebia dos vizinhos. Exceto para ele e para os conterrâneos ou vizinhos que encontrava no exílio, não era mais um iaca, auori ou gun: passara a ser chamado de angola, nagô ou mina, e africano, e negro. Na fazenda ou na cidade onde penava, podia haver quem falasse seu idioma ou outro próximo, e até quem fosse de seu vilarejo e seu malungo, ou companheiro de barco na travessia do Atlântico. Por toda parte, porém, encontrava gente estranha, de outras Áfricas que não a sua, com tradições, crenças, valores, costumes, saberes e técnicas diferentes. Este, em sua terra, andava de camisolão até os pés e gorro na cabeça, aquele não tinha mais do que um pano entre as pernas, amarrado na cintura. Aqui, as mulheres entrançavam os cabelos com contas e conchas; ali, cobriam a cabeça com véu ou turbante; acolá, raspavam o crânio. Umas vestiam-se com miçangas; outras, com bubus, ou envolviam o corpo com panos coloridos, e todas exibiam muitos colares e argolas nos braços e nos tornozelos.
          Cada um de nós não domina mais do que uma pequena parcela de sua cultura. Nem todos os sossos da Guiné e outros africanos que produziam ferro de alta qualidade sabiam operar um forno ou uma forja, mas alguns poucos, sim. No Brasil, os que já eram ferreiros ou apenas conheciam rudimentos do ofício construíram fornos conforme o modelo predominante em sua terra. Isso explica o fato de terem existido fornos tão diferentes em Minas Gerais, às vezes a pouca distância uns dos outros.
          Os africanos não se restringiram a ser os pioneiros da metalurgia de ferro no Brasil. Desde muito acostumados à cata do ouro - do qual, durante séculos, algumas regiões, como o Rio Falemé, o Alto Níger, o país acã e o planalto de Zimbábue, foram as principais fornecedoras da Europa e do mundo muçulmano - trouxeram com eles as técnicas da bateia e de escavação de minas. Alguns eram bons ourives, que criavam, na África, joias de grande beleza, como as dos axantes, e passaram a fazê-las com novos modelos no Brasil.
          Sabiam como criar o gado fora dos estábulo, soltos no campo, e o foram multiplicando e espalhando savanas afora, savanas muito semelhantes às que haviam deixado na África. Pouco valiam no Brasil as lições dos campinos do Ribatejo, e muito as dos fulas (ou fulanis) e hauçás (ou haussás). Como práticas agrícolas portuguesas lhes foram sendo impostas, só puderam plantar do modo a que estavam acostumados em suas pequenas roças e nos quilombos. Apesar disso, aqui e ali aplicaram os seus saberes, como os balantas e outros negros da Alta Guiné no cultivo do arroz no Maranhão. E trouxeram para o país muitos vegetais, como o dendê, a malagueta, o maxixe e o quiabo, básicos na cozinha brasileira, que enriqueceram com novas comidas. Assim como ocorria na África, as mulheres iam vendê-las nas ruas. E continuam a fazê-lo até hoje, em Salvador como em Lagos, e a fritar o acarajé num fogareiro, diante do freguês.
          Aos africanos deve-se também que se tenham produzido, sobretudo nas grandes propriedades rurais, e ao arrepio das proibições régias, tecidos para uso dos escravos, em teares extremamente simples, horizontais ou verticais, conforme a região de origem do tecelão ou da tecelã. Repetiu-se aqui o que sucedera no arquipélago de Cabo Verde, grande exportador de panos, onde os portugueses esqueceram os teares europeus em favor dos africanos.
          A cabana em que vivia esse tecelão era construída como na África: as paredes de sopapo  e o teto de folhas de palmeira ou de capim. Ainda que competindo com o mocambo de palha de tradição ameríndia, a morada do pobre no Brasil seria, durante muito tempo, de sopapo, à africana, e não de taipa de pilão ou de pedra, como em Portugal. Não prosperaram aqui as cabanas cônicas; impôs-se a de planta quadrada, com teto em duas águas, que no Brasil ganhou janela. Já a casa dos ricos, trazida de Portugal, recebeu da África do Oeste, e talvez, também da Índia, o alpendre na frente ou nos fundos, e nele, lá como cá, passava-se boa parte da vida.
          Nessas varandas, as crianças ouviam os relatos fantásticos de diferentes nações africanas, cujos personagens e enredos se mesclavam entre si e com os ameríndios e europeus, de tal modo que se tornava difícil separar o Curupira dos tupis do moatia dos axantes, pois ambos, do tamanho de anões, tinham os pés virados para trás e eram os senhores dos animais selvagens. Vindos da África, bichos-papões, jogos e brinquedos desembarcaram no Brasil. E lembranças de desfiles de reis, com seus enorme guarda-sóis coloridos, que no Brasil se reproduziram nos maracatus, nas congadas e nos reisados.
           Nesses desfiles reais, ouviam-se tambores, agogôs, pífanos e numerosos outros instrumentos animavam as festas nos dois lados do Atlântico, com ritmos e melodias que se foram transformando, ao se entrelaçarem com os europeus, na nossa música.
          Não se dançava na África apenas pela alegria do convívio. Dançava-se também para reverenciar os deuses e recebê-los na alma. Foram muitas as religiões que atravessaram o oceano, pois cada povo tinha a sua. Algumas absorveram outras crenças ou foram por ela absorvidas, gerando novos sistemas religiosos, como a umbanda. Outras não deixaram vestígios. Mas a uma das religiões trazidas da África, a dos orixás, converteram-se em grande número, principalmente no Brasil e em Cuba, pessoas de outras origens, e o que era a religião dos iorubás tornou-se uma religião universal.
          Por iorubás passaram a ser designados, desde a metade do século XIX, diferentes grupos que na atual Nigéria, na República do Benim e no Togo falam a mesma língua, embora com variações dialetais, possuem culturas semelhantes e se aglutinavam em torno de cidades-estado, compartilhando muitas tradições, ainda que em alguns casos pudessem ser diferentes e até mesmo conflitantes. Tidos como iorubás (e, no Brasil, também nagôs), sabiam-se oiós, ifés, egbas, auoris, quetos, ijexás, ijebus, equitis, ondos, igbominas ou de outras nações. Assim também os falantes de quimbundo, os ambundos de Angola, compreendiam vários grupos com dialetos e culturas diferenciados,  entre os quais andongos, dembos, hungos, quissamas, songos, libolos e bângalas.
          Os vários grupos iorubás e, ainda mais, os ambundos tiveram grande importância na formação do Brasil. Mas foram apenas parte de um grande coro, composto de gente de quase toda a África subsaariana. De certas regiões vieram números enormes; de outras, pouquíssimos. Houve quem fosse obrigado a longuíssimas viagens, do centro do continente até os portos litorâneos, e se conhecem casos de cativos feitos a oeste do Rio Cuanza e embarcados em Moçambique.
          Enriquece o quadro saber-se que havia ligações preferenciais entre portos brasileiros e africanos. O Rio de Janeiro, por exemplo, vinculava-se sobretudo aos portos de Angola, Congo e Moçambique, e recebia, por isso, não só pessoas dos diferentes grupos ambundos, mas também, entre muitos outros, congos, sossos, iacas vilis, huambos, lubas, galangues, bailundos, luenas, macuas e tongas. Salvador comerciava intensamente com o golfo do Benim,  em seus portos embarcavam fons, iorubás, mahis, ibos, ijós e efiques, além de indivíduos das savanas mais ao norte, hauçás, nupes (ou tapas), baribas e bornus. De São Luís do Maranhão ia-se com facilidade à Alta Guiné, e de Cacheu e Bissau lhe chegaram mandingas, banhuns, pepeis, felupes, balantas, nalus e bijagós.
          Para o Brasil foram trazidos africanos de mais de uma centena de povos diferentes. Muitos deles já se conheciam na África, por serem vizinhos ou terem comércio entre si. Um gã se entendia com os evés, os acuamus e os auoris, que viviam na mesma região e tinham costumes parecidos, e talvez até mesmo com os hauçás que se aproximavam do litoral para comerciar, pois era comum que um africano falasse mais de um idioma: o seu e outro ou outros que aprendera no convívio do mercado ou com as esposas do seu pai, algumas delas estrangeiras. E as diferenças eram compensadas pelas semelhanças, em processos contínuos de mestiçagem física e cultural. Algumas vezes, dois ou mais povos se entrelaçavam e criavam um novo, como fizeram os africanos que foram coformadores do Brasil.


Alberto da Costa e Silva. In: Revista de História da Biblioteca Nacional.Nº 78, março de 2012.

Contribuição africana ao português brasileiro



Cerca de 300 línguas africanas foram trazidas ao Brasil, principalmente da África ocidental (grupo banto e ioruba) durante o período da escravidão.

Ao que tudo indica, vieram para cá 3,8 milhões de africanos, mas há quem fale até em 15 milhões. De todo modo, bem mais que os 800 mil enviados aos Estados Unidos.

Quando chegou ao Brasil, o grupo banto representava mais de 400 idiomas da família nigero-congolesa.

Línguas bantas são faladas ao sul do Saara, do Golfo da Guiné à foz do Juba (na Somália) até o Cabo. Muitos haviam tido contato com o português antes de vir ao Brasil, pois era nesse idioma que interagia a costa ocidental dominada pelos lusitanos.

Os negros têm participação ativa na difusão e na transformação da língua portuguesa desde pelo menos o Brasil colônia, nos séculos 17 e 18.

Os negros precisavam dominar o idioma que os adaptasse ao trabalho e evitasse a confusão de falares entre escravos de origens distintas. Buscaram um português franco, que com o tempo foi alterado por diferentes origens, fonéticas e sintaxes afros. Só no século 19 surgiram falantes de uma só língua africana.

O comércio escravista provocou migração contínua por todo o território. Isso ajudou a fazer com que os brasileiros se entendessem em português. O idioma não se fragmentou por completo no país em parte por esse uso relativamente uniforme (a que depois se somariam: 1) o desbravamento do interior do país, que não deu tempo suficiente à proliferação de dialetos muito acentuados; 2) a difusão via satélite; 3) a universalização da escola.

Obrigados a usar o idioma do dominador, os africanos reinventaram o português. Ao fraturar o idioma alheio, enriqueceram o léxico do amo, abrandaram a prosódia da casa-grande (ênfase na acentuação e sonoridade das palavras) e alteraram a estrutura das frases dos meninos cuidados por amas.

Os episódios a seguir mostram um pouco dessa história.

O deus diminutivo

          Os africanos subsaarianos usam muito os prefixos. Dividem  os substantivos em dez classes. A primeira sílaba remete a palavra a uma categoria da realidade (diz se o termo batiza gente, bicho ou deus, se é grande, qual o tempo verbal, etc.). O plural é dado por prefixo: mu- indica singular e ba-, plural: mucongo é o membro da etnia conga (plural bacongo).
          Já o diminutivo pode intensificar o sentido de uma palavra. Dos muitos nomes para "Deus" (Ruhanga, o criador; Leza, o todo-poderoso; Molino, o espírito), "calunga" (o que junta) pertence à 10ª classe, a dos diminutivos ca-.
          Calunga é deus e é diminutivo. Imensidão que apequena, a palavra tanto fala do amplo céu azul que nos cobre como do além-vida que nos aguarda.
          Na mitologia subsaariana, o deus criador não tinha o  prestígio que lhe dá a tradição judaico-cristã. Pois se distanciou da criação mal a realizou e, tendo mais o que fazer, deixou a administração a cargo dos filhos.
          Seus filhos são os ancestrais fundadores das linhagens bantas. Por isso, é rara a devoção a deus único. O culto é a espíritos secundários, os ancestrais.
          Para falantes de quimbundo ou quicongo, como os iorubas da Nigéria (muitos enviados à Bahia), a linhagem é tudo - e os ancestrais perduram nos vivos. Os iorubas acreditam em reencarnação. Ela ocorre dentro do próprio clã, o avô reencarnado nos filhos e netos - até quando o avô ainda está vivo.

Padrão silábico

         O padrão silábico consoante-vogal-consoante-vogal, que ignora os encontros consonantais, é comum nas línguas bantas.
         Para recuperar esse padrão cvcv, o português de linhagem afro estimulou casos e epêntese (acréscimo de fonemas no interior do vocábulo, como [fulô] em lugar de flor) ou de suarabácti (eliminação de encontros consonantais:[saravá] em vez de "salvar").
          O português brasileiro procura esse padrão cvcv: "caraca" tomou o lugar de "craca" e há quem diga [dificulidade] e não "dificuldade".
          O contato do idioma português com a línguas africanas estimulou a palatização brasileira das consoantes [d] e [t] diante da vogal [i], que se tornou pronúncia de prestígio no país ([adgivogado] em vez de "advogado", no Rio de Janeiro e em Minas Gerais); - a ponto de a pronúncia [di] e [ti], sem palatização, ser considerada nordestina (exceção Salvador) ou caipira (['dia] no Nordeste, ['dgia] no Sudeste, para "dia".

O quilombo chega à senzala

          "Quilombo" era o exército com guerreiros desgarrados das aldeias africanas. Reunia exilados que perdiam suas tribos, vencidas por inimigos.
          A palavra vem do umbundo. Sua organização vem dos jaga, que dominaram a costa angolana por séculos. O que unia membros de tantas tribos eram os rituais de iniciação. Os ovimbundo deram aos quilombos a estrutura centralizada de seus campos de iniciação, que incluía a circuncisão de iniciados.
          No século 19, "quilombo" (kilómbó) ainda significava "campo de iniciação" para o povo mundombe, de língua umbundo.
          Os quilombos se propagaram por todo o oeste da África central.
          Seu sucesso militar estimulou a mítica de super-homens invulneráveis, que ocuparia o imaginário dos negros que fugiam das senzalas do Brasil.


O jogo do Tamandaré

          No canavial de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba (SP) de 1776, o escravo se compenetra na enxada quando vê o senhor chegar a cavalo.
          Puxa o jongo: "O kumbi virô, ei ei ei..."
          As filas de negros começam a repetir o canto, até o fim da plantação. Kumbi é "sol quente, sol vermelho" em banto. Em idioma canavial, significa trabalho de sol a sol, refrão de alerta à chegada do supervisor branco.
          Os escravos trabalham a uma distância a que podem escutar a voz alheia. Mas são impedidos de falar entre si . Um puxa o refrão, que o próximo completa enquanto capina, ao que o terceiro responde. E assim ecoam pelo engenho as mensagens bantas, as notícias de maus-tratos, estupros e ameaças, as fofocas comezinhas sobre os brancos, as encomendas da alma dos que se foram e as orações de vingança.
          Esse tipo de canção, como se sabe, nasce sempre dança.


União dos Palmares

          A Serra da Barrica, na costa de Alagoas, será fértil e livre enquanto estiverem aqui. Nascem no quilombo de Palmares, no Nordeste brasileiro, duas colheitas anuais de feijão, milho, mandioca, açúcar, batata, legumes e frutas. Muito mais do que no litoral, cevado a cana-de-açúcar.
          Em povoados como esses, serras e plantações servem de fortaleza, paliçadas e armadilhas de farpas guardam os donos dos cultivos. Os escravos se assumem agricultores, soldados, ferreiros, marceneiros, arquitetos, cantores e dançarinos. Eles se querem nascidos no Brasil e também nas tribos da África, de línguas tão numerosas quanto a população negra dessas paragens.
          Juntos, combateram mais de vinte entradas bandeirantes, bem armadas. Juntos, usam a língua do colonizador, engordada por palavras e frases não portuguesas, usadas para maior serventia que a de obedecer e calar.

Zumbi

          O quimbundo levou para as Américas a palavra nzúmbi, plural jinzùmbi. Para os quimbundos, representava uma noção muito particular do ser.
          Para eles, uma pessoa (mùtù) é:
          1) Corpo (mùkùtù):a parte visível do ser.
          2) Alma (mwènyù): parte invisível, responsável pelo sistema nervoso involuntário, que nos faz respirar, andar, bater o coração, etc.
          3) Espírito (mwòndònà):o vigia imaterial.
          O espírito é o protetor que habita a pessoa na gestação e se separa do corpo coma morte para então reviver. Já a alma se transforma em nzùmbi quando não tem  a companhia do espírito.
          Alma, portanto, não é sinônimo de espírito. Precisa tornar-se espírito ancestral (mùkùlu). O ancestral surge em sessões de transe (kúxinilà ilùndi), guiadas por kìmbànda, o especialista no culto aos espíritos anciãos.
          Logo após o enterro, a alma está nzùmbi. Fica ao lado do corpo enquanto o cadáver (kyàmbi) tiver sangue (mànyìngà). Quando o corpo seca, vai para o além, que é réplica do mundo vivo. Mas ao chegar, fraca, não suporta a luz. Só vira luz com o contato contínuo com os vivos. Enquanto isso não ocorre, fica á mercê de feiticeiros (àlòjì), que se aproveitam da fraqueza zumbi para usá-lo em vinganças.

Escravos letrados

           Os corpos de 70 negros se espalham pelos arredores do Quartel de Cavalaria, em Água de Menino, Salvador. Outros 280 são presos.
          Cai à bala a Revolta dos Malês, levante de escravos e libertos islâmicos na Bahia, em janeiro de 1835. No corpo, amuletos trazem papéis escritos pelos próprios revoltosos.
          Muitos escravos tinham familiaridade com a escrita, portuguesa ou outra (os malês escreviam em árabe suas orações a Alá).
          Em anúncios de jornais e documentos de São João Del-Rei (MG), a descrição física e de habilidades dos escravos fugidos ou à venda realçava marcas e cicatrizes, é verdade, mas também atributos como ofício, capacidade musical, de leitura ou escrita, úteis em atividades especializadas, como alfaiate, pedreiro ou carpinteiro, que exigiam o uso de medidas, cálculos e escrita.
          Nas escolas da Minas Gerais do século 19, os negros eram um número muito superior ao dos brancos. Em 1830, a comunidade livre de Minas Gerais era de 270 mil pessoas, 59% das quais negras. Outros 130 mil formavam o conjunto de escravos.



Fonte: Revista Língua Portuguesa, nº 96, Outubro de 2013.