quinta-feira, 23 de abril de 2015

Contribuição africana ao português brasileiro



Cerca de 300 línguas africanas foram trazidas ao Brasil, principalmente da África ocidental (grupo banto e ioruba) durante o período da escravidão.

Ao que tudo indica, vieram para cá 3,8 milhões de africanos, mas há quem fale até em 15 milhões. De todo modo, bem mais que os 800 mil enviados aos Estados Unidos.

Quando chegou ao Brasil, o grupo banto representava mais de 400 idiomas da família nigero-congolesa.

Línguas bantas são faladas ao sul do Saara, do Golfo da Guiné à foz do Juba (na Somália) até o Cabo. Muitos haviam tido contato com o português antes de vir ao Brasil, pois era nesse idioma que interagia a costa ocidental dominada pelos lusitanos.

Os negros têm participação ativa na difusão e na transformação da língua portuguesa desde pelo menos o Brasil colônia, nos séculos 17 e 18.

Os negros precisavam dominar o idioma que os adaptasse ao trabalho e evitasse a confusão de falares entre escravos de origens distintas. Buscaram um português franco, que com o tempo foi alterado por diferentes origens, fonéticas e sintaxes afros. Só no século 19 surgiram falantes de uma só língua africana.

O comércio escravista provocou migração contínua por todo o território. Isso ajudou a fazer com que os brasileiros se entendessem em português. O idioma não se fragmentou por completo no país em parte por esse uso relativamente uniforme (a que depois se somariam: 1) o desbravamento do interior do país, que não deu tempo suficiente à proliferação de dialetos muito acentuados; 2) a difusão via satélite; 3) a universalização da escola.

Obrigados a usar o idioma do dominador, os africanos reinventaram o português. Ao fraturar o idioma alheio, enriqueceram o léxico do amo, abrandaram a prosódia da casa-grande (ênfase na acentuação e sonoridade das palavras) e alteraram a estrutura das frases dos meninos cuidados por amas.

Os episódios a seguir mostram um pouco dessa história.

O deus diminutivo

          Os africanos subsaarianos usam muito os prefixos. Dividem  os substantivos em dez classes. A primeira sílaba remete a palavra a uma categoria da realidade (diz se o termo batiza gente, bicho ou deus, se é grande, qual o tempo verbal, etc.). O plural é dado por prefixo: mu- indica singular e ba-, plural: mucongo é o membro da etnia conga (plural bacongo).
          Já o diminutivo pode intensificar o sentido de uma palavra. Dos muitos nomes para "Deus" (Ruhanga, o criador; Leza, o todo-poderoso; Molino, o espírito), "calunga" (o que junta) pertence à 10ª classe, a dos diminutivos ca-.
          Calunga é deus e é diminutivo. Imensidão que apequena, a palavra tanto fala do amplo céu azul que nos cobre como do além-vida que nos aguarda.
          Na mitologia subsaariana, o deus criador não tinha o  prestígio que lhe dá a tradição judaico-cristã. Pois se distanciou da criação mal a realizou e, tendo mais o que fazer, deixou a administração a cargo dos filhos.
          Seus filhos são os ancestrais fundadores das linhagens bantas. Por isso, é rara a devoção a deus único. O culto é a espíritos secundários, os ancestrais.
          Para falantes de quimbundo ou quicongo, como os iorubas da Nigéria (muitos enviados à Bahia), a linhagem é tudo - e os ancestrais perduram nos vivos. Os iorubas acreditam em reencarnação. Ela ocorre dentro do próprio clã, o avô reencarnado nos filhos e netos - até quando o avô ainda está vivo.

Padrão silábico

         O padrão silábico consoante-vogal-consoante-vogal, que ignora os encontros consonantais, é comum nas línguas bantas.
         Para recuperar esse padrão cvcv, o português de linhagem afro estimulou casos e epêntese (acréscimo de fonemas no interior do vocábulo, como [fulô] em lugar de flor) ou de suarabácti (eliminação de encontros consonantais:[saravá] em vez de "salvar").
          O português brasileiro procura esse padrão cvcv: "caraca" tomou o lugar de "craca" e há quem diga [dificulidade] e não "dificuldade".
          O contato do idioma português com a línguas africanas estimulou a palatização brasileira das consoantes [d] e [t] diante da vogal [i], que se tornou pronúncia de prestígio no país ([adgivogado] em vez de "advogado", no Rio de Janeiro e em Minas Gerais); - a ponto de a pronúncia [di] e [ti], sem palatização, ser considerada nordestina (exceção Salvador) ou caipira (['dia] no Nordeste, ['dgia] no Sudeste, para "dia".

O quilombo chega à senzala

          "Quilombo" era o exército com guerreiros desgarrados das aldeias africanas. Reunia exilados que perdiam suas tribos, vencidas por inimigos.
          A palavra vem do umbundo. Sua organização vem dos jaga, que dominaram a costa angolana por séculos. O que unia membros de tantas tribos eram os rituais de iniciação. Os ovimbundo deram aos quilombos a estrutura centralizada de seus campos de iniciação, que incluía a circuncisão de iniciados.
          No século 19, "quilombo" (kilómbó) ainda significava "campo de iniciação" para o povo mundombe, de língua umbundo.
          Os quilombos se propagaram por todo o oeste da África central.
          Seu sucesso militar estimulou a mítica de super-homens invulneráveis, que ocuparia o imaginário dos negros que fugiam das senzalas do Brasil.


O jogo do Tamandaré

          No canavial de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba (SP) de 1776, o escravo se compenetra na enxada quando vê o senhor chegar a cavalo.
          Puxa o jongo: "O kumbi virô, ei ei ei..."
          As filas de negros começam a repetir o canto, até o fim da plantação. Kumbi é "sol quente, sol vermelho" em banto. Em idioma canavial, significa trabalho de sol a sol, refrão de alerta à chegada do supervisor branco.
          Os escravos trabalham a uma distância a que podem escutar a voz alheia. Mas são impedidos de falar entre si . Um puxa o refrão, que o próximo completa enquanto capina, ao que o terceiro responde. E assim ecoam pelo engenho as mensagens bantas, as notícias de maus-tratos, estupros e ameaças, as fofocas comezinhas sobre os brancos, as encomendas da alma dos que se foram e as orações de vingança.
          Esse tipo de canção, como se sabe, nasce sempre dança.


União dos Palmares

          A Serra da Barrica, na costa de Alagoas, será fértil e livre enquanto estiverem aqui. Nascem no quilombo de Palmares, no Nordeste brasileiro, duas colheitas anuais de feijão, milho, mandioca, açúcar, batata, legumes e frutas. Muito mais do que no litoral, cevado a cana-de-açúcar.
          Em povoados como esses, serras e plantações servem de fortaleza, paliçadas e armadilhas de farpas guardam os donos dos cultivos. Os escravos se assumem agricultores, soldados, ferreiros, marceneiros, arquitetos, cantores e dançarinos. Eles se querem nascidos no Brasil e também nas tribos da África, de línguas tão numerosas quanto a população negra dessas paragens.
          Juntos, combateram mais de vinte entradas bandeirantes, bem armadas. Juntos, usam a língua do colonizador, engordada por palavras e frases não portuguesas, usadas para maior serventia que a de obedecer e calar.

Zumbi

          O quimbundo levou para as Américas a palavra nzúmbi, plural jinzùmbi. Para os quimbundos, representava uma noção muito particular do ser.
          Para eles, uma pessoa (mùtù) é:
          1) Corpo (mùkùtù):a parte visível do ser.
          2) Alma (mwènyù): parte invisível, responsável pelo sistema nervoso involuntário, que nos faz respirar, andar, bater o coração, etc.
          3) Espírito (mwòndònà):o vigia imaterial.
          O espírito é o protetor que habita a pessoa na gestação e se separa do corpo coma morte para então reviver. Já a alma se transforma em nzùmbi quando não tem  a companhia do espírito.
          Alma, portanto, não é sinônimo de espírito. Precisa tornar-se espírito ancestral (mùkùlu). O ancestral surge em sessões de transe (kúxinilà ilùndi), guiadas por kìmbànda, o especialista no culto aos espíritos anciãos.
          Logo após o enterro, a alma está nzùmbi. Fica ao lado do corpo enquanto o cadáver (kyàmbi) tiver sangue (mànyìngà). Quando o corpo seca, vai para o além, que é réplica do mundo vivo. Mas ao chegar, fraca, não suporta a luz. Só vira luz com o contato contínuo com os vivos. Enquanto isso não ocorre, fica á mercê de feiticeiros (àlòjì), que se aproveitam da fraqueza zumbi para usá-lo em vinganças.

Escravos letrados

           Os corpos de 70 negros se espalham pelos arredores do Quartel de Cavalaria, em Água de Menino, Salvador. Outros 280 são presos.
          Cai à bala a Revolta dos Malês, levante de escravos e libertos islâmicos na Bahia, em janeiro de 1835. No corpo, amuletos trazem papéis escritos pelos próprios revoltosos.
          Muitos escravos tinham familiaridade com a escrita, portuguesa ou outra (os malês escreviam em árabe suas orações a Alá).
          Em anúncios de jornais e documentos de São João Del-Rei (MG), a descrição física e de habilidades dos escravos fugidos ou à venda realçava marcas e cicatrizes, é verdade, mas também atributos como ofício, capacidade musical, de leitura ou escrita, úteis em atividades especializadas, como alfaiate, pedreiro ou carpinteiro, que exigiam o uso de medidas, cálculos e escrita.
          Nas escolas da Minas Gerais do século 19, os negros eram um número muito superior ao dos brancos. Em 1830, a comunidade livre de Minas Gerais era de 270 mil pessoas, 59% das quais negras. Outros 130 mil formavam o conjunto de escravos.



Fonte: Revista Língua Portuguesa, nº 96, Outubro de 2013.
          

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