sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Capoeira

A capoeira é um fenômeno sociocultural complexo. Atualmente, é reconhecida mundialmente como patrimônio cultural da humanidade, mas já houve tempos em que era uma prática criminalizada e, por definição do Código Penal, seus praticantes eram perseguidos e presos. A trajetória da capoeira é marcada por polêmicas, controvérsias e dissensões que exigem compreender sua construção cultural na dinâmica das relações sociais e políticas.

Origens do nome capoeira
A própria configuração etimológica do nome capoeira coloca-se diante de uma polêmica. Como afirmam alguns autores, "a palavra capoeira é derivada dos vocábulos indígenas caá (mato, floresta) e oeira (que foi), logo, mata que existiu". Outra versão indica o termo caa-apuam-era, que significa mato miúdo nascido no lugar onde existiu mata virgem. Nos dois casos, há alusão aos locais de prática da capoeira: dentro da mata fechada em locais descampados e abertos. Nesse caso, pode-se considerar dois elementos que constituem a prática da capoeira em seus primórdios: a luta de resistência à escravidão, tramada em segredo, e a perseguição a essa prática cultural, que era exercida em um espaço camuflado.
Outra acepção para o termo capoeira reforça sua origem indígena, tupi-guarani, mas com outro significado. O nome teria surgido de caapo, buraco de palha ou cesto de palha, com o acréscimo europeu do termo eiro (de quem o carrega). Essa definição remete a outras informações sobre a capoeira em seus primórdios: seu espaço eram as ruas das cidades e seus praticantes, "negros de ganho, escravos libertos, que vendiam alimentos pelas ruas", que protegiam suas mercadorias carregadas em cestos com movimentos de corpo que lembravam uma coreografia e uma dança.

As duas acepções mais frequentes da palavra capoeira convergem para a indistinção entre luta e dança, entrelaçadas no desenvolver dessa prática cultural. Pode-se perceber que a ludicidade atribuiu uma forma de disfarce à resistência contra roubos cotidianos, disputas de poder entre escravizados e libertos e à oposição ao sistema escravista.

Quando tudo começou?
A capoeira veio da África ou sua origem é brasileira?
  A origem dessa prática cultural é controversa. Há, pelo menos, duas interpretações ou tendências mais conhecidas, as quais são sinalizadas por vários autores: uma que reconhece a capoeira como herança africana, e outra que a define como elaboração brasileira. Os argumentos dessas duas tendências também se aproxima da complexidade que faz da capoeira, além de uma prática cultural, um fenômeno sociopolítico.

   Os argumentos que estabelecem a origem da capoeira na África indicam elementos das tradições de povos desse continente na prática da capoeira. Uma referência constante é a dança da zebra, ou n'golo, de origem do povo mucope, do sul de Angola. Essa dança ocorria durante a efundula (festa da puberdade), na qual adolescentes formavam uma roda, com uma dupla ao centro desferindo golpes de coices e cabeçadas um no outro, até que um era derrubado no solo. Os passos da dança foram inspirados nas observações que se fazia dos machos das zebras nas disputas das fêmeas durante o período do cio. Outras referências africanas identificadas na capoeira estabelecem correlação com uma dança de guerra existente entre os povos do antigo reino do Congo e os rituais tradicionais dos povos do rio Zaire, na África Centro-Ocidental, da qual seriam provenientes também algumas cores que representam poder e chefia, como a cor vermelha.

   Os argumentos que definem a capoeira como prática cultural desenvolvida no Brasil advogam características de uma mistura da cultura africana com a cultura indígena, verificada na origem da palavra e em um ritual indígena composto por música, dança e luta.

   Argumenta-se, também, que os indícios de elementos de tradição africana presentes na capoeira não seriam suficientes para comprovar essa origem, já que essa  prática cultural não está presente em outros países da diáspora de africanos para as Américas. Esse argumento é contestado pela historiadora Regiane Mattos, que reconhece no Caribe a existência de danças marciais com origem em tradições do Congo.

   A dúvida sobre a origem da capoeira persiste. O mais importante não é superar essa controvérsia, mas compreender que o princípio da capoeira é africano, ou seja, trata-se de uma construção dos africanos e seus descendentes no contexto brasileiro, uma reelaboração da ancestralidade em outro tempo e lugar. Esse entendimento possibilita perceber que a capoeira sofreu adaptações, entretanto, guarda no seu desenvolvimento marcas da experiência e da expressividade negras.

Capoeira como resistência

   Acima de todas as controvérsias sobre a origem da capoeira, há uma unanimidade em reconhecê-la como uma prática de resistência da população negra contra o sistema escravista no Brasil. Segundo alguns pesquisadores, a prática da capoeira foi motivo de prisão no Rio de Janeiro. Essa informação  pode ser identificada, sobretudo, quando os estudiosos do tema pesquisaram os registros carcerários a partir da chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808. A culminância da perseguição à capoeira foi sua introdução no Código Penal Brasileiro de 1890, sendo associada à criminalidade.

Decreto nº 487 do Código Penal de 1890
    O Decreto nº 487 do Código Penal de 1890 estabeleceu, no Capítulo XIII, que tratava dos "vadios e capoeiras":

Art.402 - Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal,conhecidos pela denominação de capoeiragem, andar em correrias com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena de prisão celular de dois a seis meses.
Parágrafo único: É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças se imporá a pena em dobro.

Por que tamanha oposição à prática da capoeira?

    Consideram-se alguns motivos. O primeiro, mais evidente, é que a capoeira aparecia como uma forma de luta que utilizava o corpo como uma arma. Ou seja, a população negra escravizada construiu uma forma de defesa e de resistência que não era esperada e nem conhecida por seus opositores. Deve-se, ainda, levar em consideração algumas características que, ao longo da história, fizeram com que a capoeira se estabelecesse no âmbito das relações sociais mais amplas. A característica de reelaboração da ancestralidade africana ocorre não só nos movimentos, mas nos elementos utilizados para compor a capoeira: a roda, a música e a interação entre os jogadores remetem a uma forma de perceber o mundo e de exercer a relação entre o ser humano e a natureza. O Brasil pós-Lei Áurea (1888) e, sobretudo do início da República (1889), estava imerso em um contexto ainda repleto de imagens e representações negativas oriundas do sistema escravista a respeito dos africanos escravizados e de seus descendentes. Apesar da abolição da escravatura, o estatuto de humanidade e de cidadania não foi automaticamente atribuído  à população negra. Foram necessárias pressão, perseverança e muita luta para a construção de políticas públicas na superação desse quadro. Essa situação continua, em outros moldes, até os dias de hoje. A representação e os sentimentos negativos em relação aos negros, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, atingiam o Estado e as elites da época, que consideravam os negros e suas práticas culturais como suspeitos. Nesse sentido, a existência da capoeira colocava-se como uma ameaça e um obstáculo aos processos de eliminação da identidade africana, por isso a criminalização.

    Outro motivo a se considerar para explicar a criminalização da capoeira é que nela constituíram-se heróis: aqueles que a praticavam, que ensinavam o jogo, os mestres.

     Os mestres eram pessoas admiradas não só por sua força ou capacidade de vitória no jogo. Eram o emblema da coragem e da resistência de um povo e, como fonte de saber, faziam o elo com as tradições africanas. Sua atuação não se restringia ao jogo da capoeira que, por sua vez, não tinha início e fim na roda. A ação dos mestres era voltada para a construção da coletividade, do grupo, que, unido, resiste e constrói uma posição digna na sociedade. Expressavam, também, uma grande preocupação com as novas gerações: ensinar a capoeira era transmitir valores e produzir o futuro. Era admirando o mestre e jogando na roda que o aprendiz dava os primeiros passos. A sabedoria dos mestres era transmitida também pela oralidade, presente no canto da capoeira, nas histórias que precediam à roda, na descrição dos movimentos e na coragem de falar sobre a situação de escravidão a ser superada.

    Foi somente em 1934, no contexto do Estado Novo, regime ditatorial implementado pelo presidente Getúlio Vargas e com forte apelo populista, que a capoeira foi retirada do Código Penal, com a condição de também sair das ruas. Esse pode ser interpretado como o segundo momento da história da capoeira.

Capoeira como esporte

   No contexto da ditadura de Getúlio Vargas, ganhava força a ideologia da identidade nacional produzida com a interferência política e de polícia no campo da cultura. Isso não foi diferente no reconhecimento da capoeira, que deixou de figurar no Código Penal e foi alçada à condição de esporte nacional, escamoteando-se a referência afro em sua constituição.

    Uma passagem importante desse período é a transformação dos centros de capoeira em centros esportivos: lugares de prática do jogo e de encontro, de discussão sobre a capoeira como arte, identidade e debate sobre seus princípios. Um dos primeiros registros desse caso é o do Centro de Capoeira Angola, em Salvador, que passou a Centro Esportivo de Capoeira Angola. A mudança tinha por objetivo desvincular a capoeira da marginalidade e situá-la em um espaço fixo, cercado e organizado para esse fim.

    Para entender essa mudança operada na capoeira, é importante retornar uma de suas características: a capacidade de adaptar-se ao ambiente em que se encontra, como um camaleão. Essa característica está presente no jogo e constitui um princípio da prática e da experiência de capoeiristas. A capoeira angola ganhou contornos de academia, com mais interesse na transmissão do saber, com um tipo de ensino mais sistematizado, com apresentações em espaços abertos e com maior controle. Ao mesmo tempo, sem descuidar da arte do disfarce, reproduzem-se nas academias os espaços originais da capoeira, tais como a demarcação do círculo no chão, remetendo à roda, que ocorre naturalmente nos espaços públicos, além do canto e do louvor aos antigos capoeiristas e mestres pioneiros.

      No cenário da década de 1930, repleta de significações ambíguas sobre a capoeira, ocorreu uma mudança desencadeada pelo mestre Bimba, declarando que a capoeira estava insuficiente em termos de ataque e defesa. E, para subsidiar as competições, ele incluiu movimentos de outras lutas marciais - como jiu-jítsu, caratê, judô -, criando, assim, a luta regional baiana, posteriormente denominada capoeira regional. A capoeira regional enfatiza o jogo como luta, tomando como elementos importantes a força física e a flexibilidade para a realização de saltos. O tempo dessa forma de capoeira é mais rápido, caracterizado pela sucessão de ataque e contra-ataque.

   No jogo entre a prática criminalizada e a aceitação controlada, percebemos as ambiguidades que demarcam a prática da capoeira no contexto atual. Como cultura nacional, transformou-se em mercadoria de exportação para turistas; como esporte, passou a figurar como disciplina dos cursos de educação física; como tradição, começa a ser interrogada por educadores interessados em se aproximar dos princípios da capoeira como contribuição aos processos de formação das novas gerações.

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